"Quando eu era pequeno, sonhava com westerns, heróis e bandidos..."
Sérgio Leone
"The Good, the Bad and the Ugly" foi o primeiro western, o primeio filme de Sérgio Leone e o primeiro filme de Eastwood que assisti. Isso foi em 1984 e acabara de ir morar com meu pai, com quem não vivia desde os 3 anos de idade. Não sei como, acredito que por causa de uma propaganda na TV anunciando a exibição do filme, meu pai disse que gostava muito dele.
O que sei é que fiquei a madrugada (pois o filme passou em uma das sessões do antigo Corujão, da Globo) encantado, ou melhor, embasbacado, pela jornada desses três cowboys tão estranhos, Angel Eyes, Tuco e Blondie (respectivamente interpretados por Lee Van Cleef, Eli Wallach e Clint Eastwood) através das paisagens ora desérticas, ora cheia de rostos que eram em si mesmos, paisagens marcadas pelo tempo.
A história se passa durante a Guerra entre os Estados (vulgarmente, Guerra Civil Americana), quando as forças Confederadas comandadas pelo General Sibley (um inapto, responsável pelo fracasso da expedição: uns dizem que por culpa do alcoolismo, outros, por covardia), invandem o Novo México a partir do Texas. Neste cenário devastado, encontraremos as três personagens, que, por coincidência, brutalidade ou destino, ficam sabendo que duzentos mil dólares em moedas de ouro estão enterrados em um cemitério.
Mas, para chegar ao ouro (e ao cemitério, isto é ao fim de tudo) é necessário antes, que eles atravessem experiências e situações que vão, como em toda boa história, revelando e afetando a personalidade deles.
E aqui, Leone já não tem as limitações orçamentárias de seus filmes anteriores, e com um grande estúdio por trás, floresce de vez o seu estilo, permitindo que a jornada seja grandiosa, quase homérica.
O filme é preenchido com uma sinfonia de sons naturais: é possível ouvir o vento soprando a areia do deserto, o ranger de portas, lonas sendo agitadas, o arrastar dos pés e o tilintar de esporas, o som das armas de fogo sendo engatilhadas. Toda essa sinfonia serve para abrir espaço para um dos mais bem utilizados elementos do filme: o silêncio, que tanto quanto a música orquestral (composta novamente por Ennio Morricone) é parte importante na criação da tensão ou preparação para a explosão de violência que muitas vezes se segue.
O impacto das imagens e dos rostos (imagino o que é ver esse filme em um cinema e não apenas na televisão), mesmo em uma tela pequena, é magnífico, devastador. Leone contrapõe grandes paisagens, a vastidão do oeste (não temos como acreditar que aquelas paisagens não são do Oeste Americano de John Ford, mas como diz o critíco e biógrafo de Eastwood, Richard Schickel, o que importa é que o diretor consiga uma "plausibilidade emocional" e não factual, assim, para nós, aquilo é o Novo México), essas tomadas, onde a vastidão parece engolir as personagens, de repente é cortada para um rosto em close-ups nunca vistos ou usados de maneira tão "fotográfica" ou estática no cinema (salvo nos próprios filmes de Leone). Para Leone, mesmo o mais insignificante dos extras merecia ter um rosto, merecia ter uma história revelada por suas rugas ou cicatrizes.
Para completar a narrativa, há ainda a impressionante música de Ennio Morricone, que compos a maior parte da trilha sonora antes de ser filmada qualquer cena do filme, o que levou muitos críticos a acreditarem na concepção operística do mesmo. Usando elementos modernos, Morricone foi capaz de captar e recriar a sinfonia de sons naturais do filme. O maior exemplo disso é no início do filme, onde ouvimos um coiote uivar ao fundo, dando o fraseado para a entrada de um dos temas mais reconhecidos da história dos westerns: "Ay-ey-ay-ey-ahhh!" e depois o "Wah-wah-wah!", que até hoje tem o poder de transportar o ouvinte para uma era de foras da lei, onde "as histórias tinham a liberdade para expressar qualquer tipo de ação, boa, má ou mais ou menos", nas palavras do próprio Leone. Mas outros temas são trabalhados magnifcamente, "La Carroza dei Fantasmi", "La Storia de Un Soldato" e o "Il Trielo" reforçam a mitologia do filme de forma inquestionável.
Uma das passagens mais tocantes e ao mesmo tempo violentas do filme (à época, críticas chegaram a dizer que a cena era de um masoquismo inaceitável), usa a canção "La Storia de Un Soldato", para abafar a tortura que o personagem de Tuco sofre nas mão do Sargento Wallace (Mario Brega) em um campo de concentração para soldados confederados. Esta cena é uma referência direta aos campos de concentração nazistas. Este tipo de referência será levada a novos patamares e discussões no filme "Duck, you sucker!", uma reflexão sobre a destruição causada pelas revoluções na vida e alma dos Homens.
Abaixo, a letra da música:
"Bugles are calling from prairie to shore,
"Sign up" and "Fall In" and march off to war.
Blue grass and cotton, burnt and forgotten
All hope seems gone so soldier march on to die.
Bugles are calling from prairie to shore,
"Sign up" and "Fall In" and march off to war.
There in the distance a flag I can see,
Scorched and in ribbons but whose can it be,
How ends the story, whose is the glory
Ask if we dare, our comrades out there who sleep."
A tríplice jornada (que leva aproximadamente 8 meses para ser completada), acompanha os personagens através de cidades devastadas pela guerra, desertos escaldantes e mortais, pequenos mosteiros que servem de abrigo para soldados mutilados, campos de concentração e por fim, a um vasto cemitério e a um caixão cheio de ouro.
Nesta jornada, as personalidades das personagens vai revelando-se para nós. Angel Eyes torna-se cada vez mais bruto e cruel, um ganâncioso e mesquinho assassino de aluguel. Tuco Ramirez, é o personagem mais interessante (e interpretado de forma dinâmica e explosiva por Eli Wallach, ele termina roubando o filme), o que mais se aproxima de nós, em sua amoralidade, em sua forma de buscar sobreviver e adaptar-se às situações mais extremas. Também é o único personagem que tem um passado, uma família (mesmo que fragmentada) e um apreço pela religião (o final, com Tuco equilibrando-se em uma cruz no cemitério, é mais um indicador da importância da religião católica para Leone, por mais fragilizada que ela se encontre em suas histórias). E Blondie, o personagem de Eastwood, é provavelmente o mais compassivo de seus personagens cowboys. Como bem nota Howard Hughes em sua análise da interpretação de Eastwood, aqui há "mais segurança e menos esforço, ele domina os maneirismos do personagem de forma completa...o meio sorriso, os longos silencios, o cigarro em sua boca. Mas ao mesmo tempo encontramos momentos de maior humildade e humanidade, que mesmo nos personagens (cowboys) mais maduros de Eastwood seriam raros"
Este foi o último trabalho de Leone com Eastwood, eles não trabalhariam juntos e por muito tempo, Leone guardou mágoas com Eastwood por conta da recusa deste em trabalhar novamente nos projetos do diretor. Seja por estar cansado do mesmo personagem, seja por não querer envolver-se em projetos maiores (ou gigantescos, para ser justo com o ego de Leone), sabe-se que pouco antes da morte de Leone, eles encontraram-se e tiveram bons momentos juntos. Unforgiven, a obra-prima de Eastwood foi dedicado a doisde seus mestres, Donald Siegel e Sérgio Leone.
Essa é uma apresentação de um cineasta que mesmo apaixonado pelo Western, ousou violar a forma e a tradição deste, aprofundando os temas e a estética, revitalizando o gênero e tornando-o moderno. Dessa forma, Leone consegue aprofundar também temas como ética, religião, amizade e família de forma a resgatar esses elementos na história de seus personagens e sua importância para a vida cotidiana.
Mas isso tudo, toda essa análise acima, nada mais é do que tentar transpor o sentimento, a emoção, a fantasia que invadiu a mente de um garoto há muitos anos atrás, e que, fazem parte da minha vida até hoje. Mesmo através daquelas imagens de um colorido vago (era uma velha TV a do meu pai), a força do filme, sua mitologia e magnitude deixaram uma indelével marca e entraram para o meu cânone pessoal.
E sempre que vejo o filme,ao final, "Il Trielo" ecoando, Blondie cavalgando na vasta paisagem e as últimas palavras de Tuco Ramirez, tenho vontade de levantar-me, aplaudir e gritar "Bravo! Bravo! Bravo!" "Grazie Signore Leone!"...e refletindo neste momento, ainda tenho que agradecer ao meu pai por ter, sem saber, mostrado uma das maiores obras-primas do cinema para seu filho.