sábado, junho 14, 2008

Antônio Fernado Borges, Chesterton e a mosca azul.

Esta semana tive a oportunidade de assistir a uma palestra do autor Antônio Fernando Borges sobre Gilbert Keith Chesterton. Apesar do número irrisório de pessoas presentes (que esperar de uma palestra no dia dos namorados?...acredito que até o próprio Chesterton não apareceria!) a palestra foi muito bem humorada, inteligente e proferida com verdadeira humildade por um escritor que é um destes raros autores brasileiros que se deixam levar pelo Mistério.

Como não poderia deixar de ser, o núcleo da conversa foi o livro Ortodoxia, uma das mais importantes obras de Chesterton, quiça sua obra-mestra. Também surgiu, com seu jeito peculiar e sua mente sagaz o caríssimo Padre Brown, que ao final esqueceu seu guarda-chuva em um canto do auditório. Mas, Antônio Fernando Borges não limitou nossa inteligência, confiando em nossa capacidade, trouxe à baila Machado de Assis, Borges (o argentino!) e São Tomás (este pela mão do próprio Chesterton). Tudo isso, ou todos eles, para nos ajudar a compreender o nosso tempo e nossa tradição.

Nosso tempo. Tempo de "milagres" científicos e descrença. Tempo de uma cultura relativista e estéril. Tempo que busca dissecar o Mistério.

Aqui uma pausa para relembrar, graças a Antônio Fernando Borges, um poema de Machado de Assis, que serve de reflexão do que podemos perder ao acreditar que o Homem é capaz de revelar tudo que há debaixo do Sol.

A Mosca Azul

Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria

Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois;
— quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.

Machado de Assis

Que este poema nos sirva como lição de humilde, perante a realidade.

5 comentários:

Anônimo disse...

Bravo Dionisius! Belo post! Gostaria muito de ter sido um dos poucos presentes á palestra do meu caro AFB.

Grande abraço,

Dionisius Amendola disse...

Carlos, minha curiosidade está me matando...recebeu a revista? Já está a ler? diga o que achou.

abraços e obrigado pelos comentários.

Anônimo disse...

Dionisius, a revista ainda não chegou porque optei pelo frete econômico...Ela deve chegar dia dezoito. Estou ansioso pra caramba!
*
Mas enquanto isso tem lá o site da Dicta que está muito bom e tem os seus posts _ que eu só lamento por: a)serem quase sempre curtos; b)serem esporádicos _que me matêm sempre bem informado sobre as coisas por aí.
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No momento mesmo em que eu terminar de ler a D&C comentarei aqui. Espero deparar com algum texto seu. Seu nome está entre os colaboradores mas não o encontrei no índice da primeira edição que está no site. Seja com for, estou sempre por aqui.

Grande abraço,

Anônimo disse...

Dionisius,

Dicta&Contradicta é a melhor revista que jamais foi editada em língua portuguesa. Até pouco tempo atrás eu ficava frustrado por não poder dar um pulo lá em Lisboa e comprar umas quantas revistas Atlântico, que eu pensava ser o que de mais alto podia ser feito com nossa língua, em termos de revista.
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Recibi meu exemplar da Dicta, como imaginei, em 18-VI-08. Li primeiro o seu texto, depois, mas na sequencia, o do Júlio Lemos e o do Joel Pinheiro. Depois fui lendo _ ainda estou a ler_ o restante, relendo muitos trechos; é tudo tão excelente, é tudo de tanto bom gosto. Todos os adjetivos já foram usados por gente melhor do que eu. E eu concordo com todos eles.
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Não concordo com tudo que vai na revista,naturalmente. O Senhor Marcelo Felin Assami bate feio no Ian McEwan. O livro em questão, na resenha dele, é "Na praia". Gosto muito do McEwan de uma forma geral e principalmente de "Na praia"_deste livro em particular, por motivos de ordem pessoal_ mas de qualquer forma o texto do senhor "Ferino" está bom. Concordar&Discordar(risos).
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O texto "Tratato do desespero atual" é nada mais nada menos que perfeito e heróico. Perfeito porque nunca vi alguém sintetizar algo tão complexo num texto tão enxuto. E heróico porque ler 1144 páginas para fazer um ensaio é algo raríssimo de se ver.
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Michael Burleigh;Lucie Varga; Egito antigo;Novo Homem;Religião de Estado;Religiões Políticas; Cada autor citado, cada idéia, a evolução dessas coisas ao longo do tempo...é tanta informação num texto só, que fico imaginando o trabalho de-ve-ras rendilhado de escrever algo desse porte. Mas vários pontos do artigo me deixaram cheio de dúvidas. Poderia te mandar um e-mail? Ou posso fazer as perguntas aqui mesmo?
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Um ano hoje,27-VI-08, sem Bruno "Talentino", como o chamavam Giuseppe Ungaretti, Yves Bonnefoy e o Nobel de Literatura Saint-John Perse. Felizmente Dicta&Contradicta não deixará jamais que ele caia na pior das homenagens: o silêncio sem luto.
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Ah, quase me esquecia: fiquei surpreso que um sujeito tão culto, tão raro, seja gestor de empresas.Não é preconceito não. Já trabalhei em duas empresas multi-nacionais _ em cargos servis, fique claro _ e via os gestores conversando sobre "Quem mexeu no meu queijo", "Nunca desista dos seus sonhos", "O monge e o executivo" e tutti quanti...e eles eram os MBAs... por isso a minha feliz surpesa quanto a você meu caro!

Grande Abraço,

Carlos Eduardo

Dionisius Amendola disse...

Olá Carlos,

em primeiro lugar agradeço as palavras encorajadoras e sinceras. Vou passar o comentário para os editores da revista, acredito que eles vão gostar, e muito.

Quanto ao meu texto e a suas dúvidas, por favor, fique à vontade para escrever aqui, acho que fica até mais interessante para outros leitores do artigo (saiba que não só você ficou com um emaranhado de dúvidas por conta dele), vou me esforçar para clarear o que ficou duvidoso.

Quanto a ser culto, bom, na verdade culto mesmo são os autores que leio, me reservo o prazer de ser apenas um "anotador de rodapé" deles.

Sabe que concordo com você em relação ao McEwan, não pelo citado "Na Praia", pois não o li, mas li "Reparação" e acho muito bom. Mas o ponto da revista é esse, elevar o debate, não jogá-lo na vala comum. Afinal o que seria da Dicta sem o Contradicta?

p.s. - Gestão de empresas? quer saber qual o melhor livro sobre isso? "Henrique V", ali encontrei mais do que o necessário para liderar uma equipe.

Abraços,
Dionisius

p.s.2 - Tirando o artigo do Bruno Tolentino, o que mais me prendeu até o momento foi o do Joseph Bottum - A Política e a Morte