Antecipo o fim do livro e não falo da essência: um retrato tocante e ao mesmo tempo mordaz de um grupo de amigos perdido entre Berlim e São Paulo, que em busca de uma idéia vaga de liberdade e intelectualismo acaba por mergulhar em um lodaçal de experiências que não trazem nenhum alívio, nenhuma transcendente experiência (sexual ou outra qualquer) o "desraigamento dos sentidos" é apenas um suceder de ridículas apreensões da realidade além do real, e por fim, a covarde tentativa fuga de si mesmo, impossível de realizar-se, sobrando apenas um total embotamento do ser.
Mas se fosse apenas isso, esse degringolar beat de uma geração, o autor seria apenas mais do mesmo, um desses que gostam de exibir a decadência humana como algo inescapável e inerente à nossa índole (o que não deixa de ser verdade!). Tantos no nosso meio literário fazem de tal experiência a prova cabal de nossa pequenez, de nossa decadência e sordidez. Mas Karleno enxerga além.
Em primeiro lugar há situações onde, de forma sutil para o leitor que não estiver atento, percebemos o mal, por toda parte: fétido, rastejante, podre. Insinuado, este mal está no abjeto prédio que os personagens ocupam na maior parte da narrativa quando na Alemanha. O prédio decadente era um suposto prostíbulo para uso de membros da SS à época da guerra e há de se sentir em suas paredes apodrecidas, o mal escorrer e impregnar os personagens. Em uma das cenas mais assustadoras do livro, é possível sentir o cheiro de podridão impregnar nossas narinas.
E mais sutil ainda é a presença da Graça. Eis o ponto. Eis a angústia para nós, que lemos e percebemos o quão próxima ela está do personagem principal e o quanto este tenta macular sua presença. Ela é presente de forma evidente na personagem que paira pelo livro como uma Beatriz no poema. Mas aqui ela não é forte o suficiente para atrair o nosso moderno Dante de suas trevas pessoais e reais. Ou melhor, Luiza, é sim forte, quem é fraco, decadente e medíocre é Marcos em suas decisões, em sua falta de ombridade e maturidade.
Medíocre, eis a palavra, em Marcos nada é real, sincero, puro. Ele não consegue seguir um caminho de sua escolha, está sempre sendo levado pelos outros, não consegue sequer, atingir a decadência marginal e plena como seus amigos de devassidão, mas ao mesmo tempo, e nenhuma surpresa aqui, sequer consegue erguer-se do caos e realizar algo. Tenta a todo custo viver a vida de outros, chegando ao absurdo de tentar vender um manuscrito de um amigo como sendo seu. No sexo, consegue apenas concretizar o ato com uma esquálida filha do sertão nordestino onde é enviado pela burocracia do banco onde trabalha. Seu único esforço concreto, sua única ambição realizada é tornar-se um ninguém.
Muito disse aqui sobre o livro de Bocarro, mas ainda assim faltam palavras sobre a galeria de personagens (dignos do melhor Henry Miller), de sutis e certeiras críticas aos fatos e situações criados pelo desgaste de um país corroído por um regime decadente e em uma espiral de decadência e perda de valores. Quando espelhado ao Brasil, notamos que a experiência européia testemunha a decadência de uma civilização, enquanto aqui, somos tomados pela barbárie inerte.
Bocarro escancara e há de incomodar muitas gentes com seu livro; por mostrar esse hedonismo do feio, a preguiça perante o embate com a vida, o sub-intelectualismo e last but not least, o triste desperdiçar de uma geração perdida em si mesma.
No fundo é torcer; torcer para que Karleno Bocarro seja um daqueles (pois há que se esperar por essa nova geração de escritores, do qual ele é um dos primeiros há aparecer!) de quem poderemos dizer que veio para ficar, que veio para resgatar o melhor da literatura brasileira. Devemos ficar atentos e perspicazes, pois estamos diante de um autor capaz de levar-nos a um topo nunca alcançado antes. De sermos original e finalmente, universais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário